Adoniran e o Centro: a cidade canta quem caminha nela
A colunista Wans Spiess relembra suas histórias na relação entre as músicas de Adoniran e o Centro de São Paulo.
Wans Spiess
Para acompanhar o caminho
Tiro ao Álvaro – de Adoniran Barbosa, imortalizado na voz de Elis Regina
“Eu gosto muito de São Paulo, mas São Paulo não gosta de mim.” – Adoniran Barbosa
Todo domingo, na infância, eu fazia uma pequena viagem: saíamos da Saúde, onde eu e meus irmãos morávamos com meus pais (minha mãe mora na mesma casa até hoje!), e atravessávamos a cidade até a Rua Aurora, no Centro de São Paulo. Era como um passeio sensorial – um que cheirava ao perfume das flores do Largo do Arouche, tinha o sabor dos doces da Doceria Dulca, onde quase sempre parávamos para comprar um docinho, e o som do elevador com porta pantográfica – aquele que fecha com um rangido elegante e enferrujado.
Lá em cima, no apartamento dos meus avós, meu avô — alemão, mas com toda a pinta de italiano – nos esperava com uma taça de vinho na mão e um ritual que ainda mora na memória: soda limonada no copo das crianças, com uma gotinha do vinho dele – só pra gente brindar junto.
É gostoso ler e/ou escrever essas imagens simples, íntimas, cheias de códigos familiares. Muitas vezes elas nos remetem a cenas que poderiam ser da vida de qualquer um. Poderiam ter virado textos de livros ou versos de música. Queria ter esse tipo de talento. Adoniran Barbosa tinha. E soube retratar – e cantar – a vida de muita gente.
Adoniran não contava a cidade como um observador. Ele era parte dela. Nascido João Rubinato, virou personagem de rádio, depois nome artístico, depois lenda. Inventava versões diferentes para a própria vida. Não ligava muito pra precisão. O que importava era o tom. E nisso, ele sempre acertava.
Ele também morou na Rua Aurora. E andou por esse mesmo centro que eu atravessava –primeiro quando criança, depois universitária, nas idas e vindas ao Largo São Francisco como estudante da Faculdade de Direito. Talvez tenha passado pelas mesmas calçadas que eu. Só que ele não apenas passou: ele escutou. Anotou com o ouvido. Fez música com o que os outros deixavam escapar.
Não à toa, seus sambas falam de elevador, boteco, fila, despejo, saudade, trem, comida, falta de comida, mãe, esquina. São músicas que não usam metáforas – usam pontos de exclamação da realidade. Meu amigo Lincoln costuma dizer: “O enredo de Adoniran é quase sempre um drama, uma tragédia, e mesmo assim ele faz todo mundo entrar no samba”.
• Em Trem das Onze, o amor termina porque o último trem não espera.
• Em Iracema, a morte chega com um carro desgovernado.
• Em Tiro ao Álvaro, um peito é perfurado por um simples olhar.
• Em Saudosa Maloca, a casa foi derrubada e ninguém chorou – só cantou.
Hoje moro na Rua Maria Paula e o Centro continua me assombrando de beleza e melancolia. Cada esquina tem uma canção abafada. Algumas felizes, outras feitas da mesma tristeza disfarçada que Adoniran sabia tão bem transformar em samba. Como quem transforma uma ferida em riso – e o riso em resistência.
Em uma conversa com meu amigo e pesquisador Lincoln Paiva, descobri detalhes ainda mais incríveis sobre esse poeta do cotidiano. No dia 26 de abril, volto à Rua Aurora – agora com outros passos – para uma caminhada imersiva em parceria com o Sesc. Eu e Lincoln vamos levar um grupo para visitar os lugares que inspiraram Adoniran: o Viaduto Santa Ifigênia, a Praça da Sé, a Júlio de Mesquita, a Galeria do Rock, a calçada onde nasceu a Saudosa Maloca.
Nem bem colocamos o passeio à disposição, e as vagas esgotaram. Mas deixo aqui meu convite para continuar essa caminhada comigo – seja por aqui, seja pelas ruas.
Me acompanha no Instagram. Ainda tem muito chão – e muita história – pra gente ouvir junto.
Ahhh … e ainda dá tempo de indicar o documentário Adoniran – Meu Nome É João Rubinato (2018 ‧ 1h 32m) disponível no Canal CMB – Central da Música Brasileira. Aproveite!
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